sábado, 8 de março de 2014

À mesa - Augusto dos Anjos

POEMA DA NOITE DE 02 DE NOVEMBRO DE 2009


Cedo à sofreguidão do estômago. É a hora
De comer. Coisa hedionda! Corro. E agora, 
Antegozando a ensangüentada presa,
Rodeado pelas moscas repugnantes,
Para comer meus próprios semelhantes
Eis-me sentado à mesa!Como porções de carne morta … Ai! Como
Os que, como eu, têm carne, com este assomo
Que a espécie humana em comer carne tem! …
Como! E pois que a Razão me não reprime,
Possa a terra vingar-se do meu crime
Comendo-me também.

Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos  (Cruz do Espírito Santo, 20 de abril de 1884 — Leopoldina, 12 de novembro de 1914) - Foi poeta. Começou colaborando com o jornal OComércio, onde publicou seus primeiros poemas. Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Cidade do Recife. Publicou um único livro em vida, Eu, no ano de 1912. Após sua morte, é publicado o livro Eu e Outras Poesias, contendo alguns poemas inéditos. Considerado por muitos como um dos grande poetas brasileiros.

A cor da mente - Cristovam Buarque


Nos anos 70, a televisão mostrou uma série com o nome de “Raízes”, contando a trajetória de uma família de negros americanos, desde seu passado na África. A série emocionou centenas de milhões de pessoas ao mostrar o sofrimento de sucessivas gerações que tinham em comum a cor da pele e a escravidão por serem negras.
Trazida para o presente, a série “Raízes” pode ser escrita sob outro ângulo: as sucessivas gerações de pessoas carregando a característica do analfabetismo. A genealogia de um analfabeto mostra quase toda sua linha de transmissão no analfabetismo. Raramente o filho de alfabetizados cai no analfabetismo. Já o analfabeto adulto é filho e neto de analfabetos.
Mas diferentemente da transmissão da escravidão pela cor irremovível, a transmissão do analfabetismo decorre da falta de programas educativos para sua erradicação. Porque a cor da mente é mutável pela educação.
Muito provavelmente, os 13 milhões de analfabetos de hoje são descendentes dos 6,5 milhões de analfabetos que povoavam o território brasileiro em 1889. Naquele ano, a elite republicana fez uma bandeira com um lema escrito, mesmo sabendo que seus cidadãos eram incapazes de reconhecê-lo porque não sabiam ler. E desde então 125 anos se passaram sem um gesto enfático e duradouro que abolisse a tragédia, que permitisse a todos os brasileiros lerem a sua bandeira.
A repetição genealógica do analfabetismo é causada pelo descaso com a educação das crianças, que deixa aberta a torneira por onde surgem novos analfabetos adultos, e pela falta de um programa concreto e persistente para a erradicação desta tragédia entre os adultos.
Para resolver o problema em cinco anos seria necessária a mobilização de 130 mil jovens bolsistas ao custo anual inferior a R$ 1 bilhão, e mais R$ 2 bilhões de outros gastos operacionais.
Essa era a intenção do Ministério da Educação no primeiro ano do governo Lula ao criar uma Secretaria Extraordinária da Erradicação do Analfabetismo, destinada a gerir o programa Brasil Alfabetizado.
A secretaria chegou a formular o Programa de Apoio ao Estudante, proposto no projeto de lei nº 2.853/2003, pelo qual os alunos de universidades particulares receberiam bolsas para pagar seus estudos, desde que aceitassem exercer atividades relacionadas à alfabetização de adultos, por seis horas semanais, durante um dos semestres de seus cursos.
Além disso, foram implantados programas de “leituração” para manter a alfabetização conquistada. Em 2004, a secretaria foi extinta, e o programa perdeu vigor; o PAE se transformou em Prouni sem exigência aos beneficiados. O resultado é que o problema continua e, em 2013, houve aumento no número de analfabetos: os 6,5 milhões de 1889 duplicaram, em 2013, para 13 milhões.
Quem sabe se, neste ano, algum candidato a presidente vai apresentar o compromisso e dizer como, quanto custa e de onde sairão os recursos, financeiros e humanos para romper a genealogia do analfabetismo, mudando a cor da mente desses brasileiros.

Cristovam Buarque é senador (PDT-DF).

OBRA-PRIMA DO DIA (PINTURA) Ícone: Theotokos de Vladimir (1131)

Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa - 
8.3.2014
 | 12h00m


Conhecido como “Virgem de Vladimir”, santa protetora da Rússia, esse ícone é dos mais perfeitos exemplos da arte bizantina. Theotokos em grego significa Mãe de Deus; Vladimir fica a nordeste de Moscou.
Era reverenciado na cerimônia de coroação dos Czares, na eleição dos Patriarcas e podia ser visto em cerimônias de Estado. Restaurado algumas vezes, só os rostos da Mãe e do Filho estão no estado original.
Chegou à Rússia em 1131, como presente para o grão-duque de Kiev; em 1155, o filho do duque levou-o para Vladimir. Quando os cavalos que o transportavam empacaram perto de Vladimir, recusando-se a continuar caminho, isso foi interpretado como sinal da Mãe de Deus, que queria que seu ícone ficasse ali.
Para abrigá-lo, foi erguida naquele exato lugar uma Catedral da Assunção e o ícone passou a ser chamado Theotokos de Vladimir.
Em 1395, Moscou foi ameaçada por Tamerlane, temido conquistador tártaro, e o Patriarca ordenou que o ícone fosse levado para lá. Orações dia e noite diante do ícone obtiveram a graça da retirada de Tamerlane, apavorado com um sonho que teve.
Os moscovitas recusaram-se a devolver a imagem e a entronizaram em sua Catedral da Assunção, dentro das muralhas do Kremlin. Outras duas invasões de tártaros foram evitadas graças a Theotokos.
Dizem que em 1941, quando os alemães se aproximavam de Moscou, Stalin mandou colocar o ícone num avião para sobrevoar a cidade sitiada: dias depois, o exército alemão retrocedeu e Moscou foi poupada.
Em exposição na Galeria Tretiakov, Moscou.


(Publicado originalmente em 22 de dezembro de 2008)

Cartas de Buenos Aires:Uma senhora de 50 anos chamada Mafalda


Gabriela Antunes
Muita gente começou a comemorar o 50° aniversário da maior musa dos quadrinhos argentinos no ano passado, mas coube ao próprio criador da menina mais geniosa do mundo pôr fim às dúvidas.
“Sua primeira publicação foi no dia 29 de setembro de 1964 na revista Primera Plan”, conforme comunicado na página de Quino, o pai da mocinha, que atribui a confusão a vários erros de biógrafos. Na verdade, é uma senhora de 54 anos já que, nas tirinhas de Quino, Mafalda começa a contestar o mundo aos 4 anos de idade.
Uma praça no bairro portenho de Colegiales, um mural no metrô da Plaza de Mayo, uma estatua da simpática idealista num banquinho em San Telmo atestam o amor argentino por uma de suas filhas mais ilustres, que sonha ser intérprete nas ONU, detesta televisão e apelidou sua tartaruga de estimação de “burocracia”.
Inquieta, “beatlemaníaca” e “sopa-fóbica”, Mafalda é, segundo as palavras de Joaquín Salvador Lavado Tejón, Quino, “uma menina que tenta identificar os bons e maus deste mundo”.


Um mundo que Quino viu se transformar e cujos países bons e maus foram confundidos várias vezes. Argentino de Mendonça, filho de imigrantes espanhóis, Quino sentiu os efeitos da fragmentação da Espanha na guerra civil, da segunda guerra mundial e da ditadura na Argentina.
Seus personagens não estiveram à margem de todas essas mudanças. Mafalda, Manolito, Susanita, Felipe, Libertad, Miguelito, Guille encarnam arquétipos típicos da classe média das décadas de 60 e 70, da esposa dedicada, dos conformistas, moderados, dos ingênuos aos idealistas, como a própria Mafalda. Como ela mesma dizia, “existem mais problemólogos que solucionólogos”.
Em 1973, por decisão de Quino, a última tirinha da Mafalda foi publicada. Seu humor perspicaz permeou outras gerações, apesar da conclusão de Quino, segundo seu editor, que “Mafalda não tinha nada mais a dizer”.
Mas ela voltou a aparecer em ocasiões pontuais, como em 2009, quando deu as caras no jornal italiano La Repubblica criticando declarações misóginas do então primeiro ministro Silvio Berlusconi. “Não sou uma moça à sua disposição”, dizia a tirinha, juntando-se a milhares de mulheres que se sentiam ultrajadas por declarações machistas do primeiro ministro.
Com os “problemólogos” à solta, Mafalda continua mais atual do que nunca. “Às vezes até eu me surpreendo como algumas tirinhas de 40 anos atrás continuam se aplicando ao contexto de hoje”, falou Quino em uma entrevista.
“Parem o mundo que quero descer”, diria a autora dessa frase hoje ao encontrar o mesmo mundo fragmentado que questionava há meio século. Genial e geniosa.

Gabriela G. Antunes é jornalista e nômade. Cresceu no Brasil, mas morou nos Estados Unidos e Espanha antes de se apaixonar por Buenos Aires. Na cidade, trabalhou no jornal Buenos Aires Herald e hoje é uma das editoras da versão em português do jornal Clarín. Escreve aqui todos os sábados

OBRA-PRIMA DO DIA (PINTURA) A Festa dos Deuses, de Giovanni Bellini (1514)


 
                 
Giovanni Bellini, também chamado em sua terra natal de Giambellino (Veneza, c. 1430 - idem, 1516),  foi um pintor do Renascimento. O mais famoso de uma família de pintores de mesmo sobrenome, era cunhado e amigo de Mantegna, e teve Tiziano entre seus aprendizes. É considerado como renovador da pintura da escola veneziana, movendo-a para um estilo mais sensual e policromático. Pelo uso de cores claras de lenta secagem, Bellini criou sombras detalhadas, profundidade e ricos coloridos. Suas fluentes e coloridas paisagens tiveram um grande efeito no seu tempo.
Sua última obra foi A Festa dos Deusespara o duque Afonso de Ferrara, mas morreu antes de terminá-la e a tarefa foi legada a seu pupilo Tiziano (1490-1576).
A pintura é de tal modo delicada que os contornos são praticamente imperceptíveis, o que revela a criatividade e o talento de Bellini aos 88 anos de idade.

Acervo National Gallery of Art, Washington, D.C., EUA

Cartas de Seattle: Pegue seu livro e vá pra festa


“É um grupo de leitura”, tentou explicar o turista à esposa ao passar pelo salão de hotel apinhado de gente. De fato, quase 100 pessoas estavam com os olhos grudados em livros – físicos e digitais. Mas cada um estava lendo um livro diferente, todos em silêncio. Não havia debate algum. O que estava acontecendo era na verdade uma leitura em grupo, não um grupo de leitura. Mais especificamente, a Festa da Leitura em Silêncio.
Toda primeira quarta-feira do mês é a mesma coisa. Às 6h da tarde começa a chegar gente com um livro embaixo do braço. Ou um Kindle. Ou um iPad. Na falta, smartphonetambém serve. Eles chegam quietinhos, sentam bem perto um do outro mesmo sem se conhecerem – porque não tem muito espaço –, pedem uma bebida em voz baixa ao garçom e abrem o livro.
Às 6h40, já é difícil encontrar onde sentar, completos estranhos dividindo sofás de três lugares ou mesinhas redondas daquelas em que só cabem duas xícaras e pronto.
Às 7h, tem fila já saindo pela porta do suntuoso hotel Sorrento. Como quem já sentou não tem pressa de acabar a leitura, o jeito é começar a ler ali mesmo, em pé, na fila.
Hall de entrada, foyer e salão Fireside repletos de gente. Lendo. Em silêncio. Ao fundo, só o som de uma harpa sendo tocada ao vivo. No mês passado era um piano. Quando a bebida acaba, ou a leitura acaba, ou a vontade de ler acaba, ou chega a hora de ir pra casa, cada um paga a conta e sai. Sem dizer nada.


Eu procuro me concentrar na leitura, mas a curiosidade fala mais alto. Passo o olho discretamente pra ver quem está lendo o quê, quem está fazendo caras e bocas numa reação ao enredo interessante, quem lê marcando o livro ou fazendo anotações, quem está usando o celular para mandar mensagem em ver de ler, quem não aguenta e comenta alguma coisa cochichando no ouvido do amigo, quem claramente está começando a namorar e fica lendo agarradinho, prestando mais atenção no outro do que no livro, quem não desgruda do livro nem para saborear o vinho branco geladinho servido há pouco.
Para quem está achando tudo isso uma grande bobagem, encare o cenário como uma celebração ao hábito de ler. Tudo começou com três amigos que se reuniam para ler juntos, na casa de um deles. Em vez de ler cada na própria casa, eles preferiam estar no mesmo lugar, mesmo que os livros fosse todos diferentes.
Aí a vida foi tomando outros rumos e um deles teve uma grande ideia: passar a se encontrar no Sorrento, abrir o “evento” para quem quisesse participar e não cobrar nada por isso. O hotel concordou. E começou a tradição em Seattle.

Melissa de Andrade é jornalista com mestrado em Negócios Digitais no Reino Unido. Ama teatro, gérberas cor de laranja e seus três gatinhos. Atua como estrategista de Conteúdo e de Mídias Sociais em Seattle, de onde mantém o blog Preview e, às sextas, escreve para o Blog do Noblat.